sábado, setembro 03, 2005


















Na marcha pelo deserto eu sabia
Que alguns morreriam
Mas pensava sob o céu redondo
- Onde o limite do meu amor, da minha força?
E eis que morro antes do próximo oásis
Com a garganta seca e o peso
Ilimitado do sol sobre os meus ombros
Eis que morro cega de brancura
Cansada de mais para avistar miragens
Eu sabia
Que alguém
Antes do próximo oásis morreria.

Sophia de Mello Breyner Andreson

E foi a meio da tarde de dia 3, o segundo grande dia de caminhada em que fizemos cerca de 23 km, que chegámos a cantar a Santiago de Compostela. Sentimos de repente aquele contentamento da chegada, uma paz interior enorme, um sentido de grupo que nos aproxima constantemente.
Ao longo da caminhada acabamos sempre por pensar no limite do nosso amor e da nossa força. São limites que são difíceis de estimar; que são sempre maiores do que nós conseguimos avaliar. Quando pensamos que os estamos quase a alcançar, parece que arranjamos em nós próprios sempre mais amor e mais força que nos ajudam a continuar, enquanto acreditamos e que temos algo que nos faz motivar.
O poema da Sophia que coloquei acompanhou-nos no nosso percurso. Ainda não percebo bem se é bom ou não morrer antes do próximo oásis. Acho que depende da maneira como interpretamos o poema. Não o será se o associarmos ao esforço feito para alcançar um objectivo que pretendemos abraçar, mesmo cientes das dificuldades. Mas poderá ser se entendermos o morrer de que ela fala como um ultrapassar das dificuldades para renascer de novo; um morrer para aquilo que é pesado e que queremos arrancar de nós, para continuarmos mais seguros e certos até ao próximo oásis; dificuldades que relembramos exactamente quando pensamos no limite do nosso amor e da nossa força que pode ser fortificado, dia-a-dia.
Ao chegarmos ao nosso oásis, é tão bom relembrar a caminhada, os pontos bonitos por que passámos, os locais onde descansámos, os momentos em que rezámos, em que cantámos, em que conversámos, em que brincámos e em que fizemos as nossas refeições. É tão bom ter a certeza da nossa cumplicidade, da nossa amizade…

“A raposa voltou à sua ideia:
- [...] mas se me cativares a minha vida ficará como que iluminada pelo sol. Conhecerei um ruído de passos que será diferente de todos os outros. Os outros passos fazem-me meter debaixo da terra [...] Os teus chamar-me-ão para fora da toca como uma música. E além disso, olha! [...] O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me dizem nada. E isso é triste! Mas tu tens cabelos de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado! O trigo, que é dourado, far-me-á lembrar de ti. E amarei o som do vento no trigo...
A raposa calou-se e olhou muito tempo o principezinho.
- Por favor... cativa-me!”
Saint-Exupéry
O Prinicipezinho, XXI

Por vezes, como na nossa caminhada, acabamos por falar do que é a amizade entre as nossas conversas; do importante que para Nós é termo-nos uns aos outros; da importância deste elo forte que é também de amor. Porque o amor é o sentimento mais bonito do mundo. Qualquer tipo de amor…

“- Só se conhece as coisas que se cativam, disse a raposa. Os homens já não têm tempo para conhecer o que quer que seja. Compram coisas feitas nos comerciantes. Mas como não existem comerciantes de amigos, os homens já não têm amigos. Se queres ter um amigo, cativa-me! [...]
- É necessário ser paciente, respondeu a raposa. Sentas-te primeiro um pouco longe de mim, assim, na erva. [...] Mas, de dia para dia, poderás sentar-te um pouco mais perto...
No dia seguinte o principezinho voltou.
- Era preferível teres voltado à mesma hora, disse a raposa. Se vieres, por exemplo, às quatro da tarde, a partir das três começarei a sentir-me feliz. Quanto mais a hora avançar, mais me sentirei
feliz. Chegadas as quatro horas já estaria agitada e inquieta; descobriria o preço da felicidade! Mas se vieres a qualquer hora, ficarei sem saber a que horas hei-de vestir o meu coração..."
Saint-Exupéry
O Principezinho, XXI

E acho que foi este o grande ensinamento da nossa caminhada. Um relembrar de um percurso que nunca é demais relembrar e que vamos fazendo passo a passo.

“O caminho da vida na terra
Começa, desde o nascimento
Pelos pequenos passos da criança;
E prolonga-se, passo a passo,
Até ao grande passo.
Dar um passo é sempre arriscado.
Dar um passo,
É arriscar perder o equilíbrio,
É arriscar pôr o pé no desconhecido.
Dar um passo
É comprometer-se
Com um caminho livremente escolhido.”
Porque há caminhos que escolhemos.
Quando chegámos junto da Catedral, eu e o Tó ainda nos pusemos a fazer umas gincanas e jogos com o pau que o Nuno improvisou como cajado. Visitámos a Catedral, batemos três vezes com a cabeça no santinho [como já é tradição], passámos por muitas casinhas para provar as famosas tartes de Santiago e continuámos, continuámos sempre com aquele sorriso e boa disposição que não nos largava. =)