Pequenos eus

Na grande maioria, acordamos bem cedo pela manhã, arranjamo-nos para sair depois de um banho quente que nos sabe tão bem e enfrentamos o mundo lá fora enquanto planeamos, nos nossos pensamentos, como vamos gerir o que queremos e o que temos de fazer. Vemos os carros apresados à nossa frente e um grupo de pessoas à espera dos autocarros que pretendem apanhar, enquanto outras tantas acabam de começar, já nos empregos, a trabalhar. Na rádio, ouvimos os programas da manhã em que os locutores fazem de tudo para nos fazer soltar gargalhadas matinais e ficamos atentos às notícias do trânsito e à previsão do tempo que não tardam a anunciar. Uns deixam os filhos na escola e outros, no mesmo momento, entram como de costume pela mesma porta automática que faz sentir de novo no local de trabalho todas as manhãs. Ao percorrer os corredores ouvem-se os bons dias, trocam-se sorrisos, até que se chega junto da secretária ou do cacifo, pousa-se a mala e pergunta-se como acabou por ser o final do dia anterior àquele colega com quem se dividem mais horas e intimidades. A ligar os computadores, a beber o primeiro café do dia, a folhear os jornais diários, a ligar a televisão, a aprontar os primeiros papeis ou a ver a caixa de correio electrónico, pequenos eus, todos diferentes, todos tão iguais…
Pequenos eus cheios de sonhos e com tantos deles individuais, pequenos eus com as suas crenças e os seus valores, pequenos eus com as suas histórias e as suas experiências, as suas alegrias e as suas tristezas. Pequenos eus de fé, de coragem e de esperança, pequenos eus que têm força, que acreditam e que têm o destemor para continuar sempre para a frente. Pequenos eus que são grandes tus para alguns outros pequenos eus, pequenos eus que são pequenos tus para tantos outros pequenos eus. Pequenos eus individuais que se podem tornar pequenos eus colectivos. Pequenos eus colectivos constituídos por pequenos eus individuais que se vêem como grandes tus. Sempre pequenos eus que só podem alimentar a alma com sorrisos, com amor, com carinho, com respeito, com pequenos gestos. As únicas formas possíveis de a nutrir. Pequenos gestos que podem ser recebidos ou ser feitos. Pequenos gestos que, já sabemos, podem fazer a diferença. Pequenos gestos que podemos vir a fazer pelo mundo, pequenos gestos que temos de começar por ter connosco próprios.
E era isso que hoje queria relembrar. Queria relembrar dos pequenos gestos que nós, pequenos eus, não nos devemos esquecer de permitir a nós mesmos. Das vezes que não nos devemos esquecer de rir do que nos acontece, das vezes que nos devemos dar mais valor, das vezes em que não devemos ser tão severos e exigentes connosco, e daquelas todas em que nos devemos permitir ser amados, acarinhados, elogiados e em que nos devemos deixar viver de cabeça aberta e receptivos a todos os sorrisos que vêm ter connosco. Importa querermos também para nós, importa gostarmos do pequeno eu que somos e importa querermos crescer com ele. Como li um dia num texto escrito por Dário Pedroso: “Um pardal nunca poderá ser canário, nem cantar como o canário. O que se lhe pede é que seja um pardal perfeito. Uma pomba nunca voará como uma águia, o que se lhe pede é que se esforce por ser uma pomba perfeita ou o mais perfeita que for capaz”. Só assim, aceitando-nos como pequenos eus, nos podemos sentir pequenos eus mais cheios e vir a ser grandes tus como alguns outros são para nós. Por isso, os nossos pequenos gestos que mudam o mundo, começam com os pequenos gestos que nos enchem de sorrisos profundos e de momentos inesquecíveis que são importantes viver, primeiro que tudo, para que nos possamos depois, abrir e sorrir ao mundo. Sempre.

[Foi por isso que nos últimos dias fomos os quatro a um bar à noite, e depois para a galhofa para o pé da torre de Belém enquanto contemplávamos o rio; foi por isso que fomos os três almoçar fora e ao cinema; foi por isso que fomos os dois ver um espectáculo e conversar num bar, e por isso que fomos os três comer um gelado com chocolate quente. Sorrisos! =)]